RESUMO
Este trabalho apresenta um estudo acerca dos reflexos trazidos pela Lei nº. 12.015/09 no tratamento penal disposto pelo Código Penal Militar. Procuramos abordar aspectos da dogmática penal, bem como elementos interpretativos, buscando, com isso, elucidar todas as questões pertinentes ao foco central de nosso trabalho, que é a defesa da identidade substancial entre os crimes militares de estupro e atentado violento ao pudor e o atual crime de estupro, permanecendo, por conseguinte, a aplicação do art. 9º, Inc. II, do Código Penal Militar.
1 INTRODUÇÃO
O direito penal brasileiro vem sofrendo nos últimos anos intensas e significativas mudanças, sempre na busca por uma justiça criminal célere e contemporânea ao atual estagio de desenvolvimento da sociedade brasileira. Esta transformação que vivenciamos hoje se materializa tanto pela eliminação de tipos penais incongruentes e incompatíveis com a evolução dos costumes, como se relaciona com a ampliação do rol de condutas proibidas e aumento do quantum das sanções penais. Tudo isto tem por fim promover o necessário ajuste do antigo texto penal à realidade social.
Infelizmente, não vislumbramos uma eficiência nestes ajustes ou, mais precisamente, tentativa de ajustes ao direito penal, já que no Brasil não existe uma política criminal séria, com estudo criminológico e participação de todos os setores organizados da sociedade, visando buscar-se a solução mais adequada ao problema penal. Mesmo assim, mudanças merecem e devem ser feitas, em que pesem os equívocos observados ao longo deste processo.
Podemos citar como exemplos de alterações desta natureza a abolitio criminis em relação ao adultério, o agravamento da resposta penal relacionada à lesão corporal cometida em situação de violência doméstica, e, mais recentemente, a alteração dos crimes contra os costumes e suas circunstâncias complementares.
Em se tratando especificamente da alteração proposta pela Lei nº. 12.015/09, que modificou profundamente o tratamento penal dispensado aos crimes sexuais de estupro e atentado violento ao pudor, não apenas a dogmática penal dos tipos em questão sofreu modificação, já que tal alteração legislativa acabou refletindo para além do próprio código penal, atingindo, por exemplo, os crimes sexuais previstos no Código Penal Militar.
É justamente este aspecto que entendemos ter sido esquecido pelo legislador ordinário, que acabou não se preocupando com os reflexos da alteração legislativa proposta em outros dispositivos penais, deixando a tarefa de integração e interpretação à doutrina e jurisprudência, algo, inclusive, diga-se de passagem, bastante comum no cenário nacional, em se tratando da precária política criminal brasileira.
Esta omissão irresponsável do legislador acaba provocando uma desestabilização do sistema penal, vez que não se estabelece de pronto a segurança jurídica necessária ao bom funcionamento do sistema punitivo. Assim, a lei entra em vigor, dá-se a ela a publicidade necessária, mas não se encontra de logo uma uniformidade quanto a sua aplicação, conseqüência e reflexos, dificultando, desse modo, a plena eficácia da norma penal na missão de atingir os seus efeitos desejados.
libidinoso. A grande inovação, portanto, foi condensar num único dispositivo penal duas
figuras típicas, ambas sob o mesmo nomen juris de estupro. Outras modificações também são
identificadas e mereceriam uma análise mais detalhada, porém, por fugirem do foco central
deste trabalho, decidimos por não discuti-las.
Partindo da observação das elementares que acima citamos, observamos que, apesar de algumas divergências quanto a certas expressões, em se tratando da conduta típica propriamente dita, esta se traduz nas mesmas circunstâncias verificadas pela legislação anterior. Isto quer dizer que o novel art. 213 nada mais fez do que condensar num só dispositivo penal os antigos tipos penais dispostos nos arts. 213 e 214, não criando um novo crime, nem tampouco descriminalizando a conduta de atentado violento ao pudor.
Ingressando-se na análise propriamente dita do “novo crime”, o elemento típico constranger mulher foi substituído por constranger alguém, sendo, ainda, incluído o verbo ter à conjunção carnal, o que para nós, pelo menos neste último caso, não conta com nenhuma repercussão prática além daquela já vista na legislação anterior. Além disso, o fato do dispositivo citado referir-se à alguém também não terá nenhuma conseqüência nova além daquela que já havia no dispositivo anterior, pois a conjunção carnal, dentro do que hoje se funda a doutrina dominante consiste na introductio penis intra vas, e, pelo que entendemos, tal ato consiste no encontro entre o órgão sexual masculino e feminino, ou seja, a já conhecida expressão encontro de carnes, que nada mais é do que a própria conjunção carnal. Assim, em relação ao antigo estupro não vislumbramos nenhuma conseqüência prática, a não ser no contexto da pena, da violência presumida e outras circunstâncias.
E o que ocorreu com o atentado violento ao pudor? Houve descriminalização? Entendemos que não. Isto significa dizer que o atentado violento ao pudor, ou melhor, as elementares típicas que construíam formal e materialmente este delito continuam existindo, só que agora sob a denominação de estupro e presente no art. 213. As razões para firmarmos este entendimento são as mais variadas possíveis, partindo desde regras básicas de interpretação da hermenêutica clássica, até o desenvolvimento de conceitos tradicionais da dogmática penal.
Em matéria de interpretação, não podemos deixar de criticar aqueles que apressadamente interpretaram literalmente o art. 213, sem observar sua essência, concluído de forma anacrônica que o atentado violento ao pudor deixou de existir ou que estaríamos diante de um novo crime. Por mais absurdo que possa parecer, há quem defenda a possibilidade de se rever todas as ações penais fundadas em fatos ocorridos antes da vigência da Lei nº. 12.015/09, a fim de reavaliar a perspectiva da incidência da abolitio criminis como causa de absolvição do réu ou extinção da execução penal.
A abolitio criminis é um instituto cuja ocorrência se dá quando uma determinada conduta típica deixa de ser criminalizada pelo direito penal, quer dizer, quando uma conduta penalmente relevante não conta mais com a proibição contida na lei penal incriminadora. Por certo que não foi isto que ocorreu com o crime de atentado violento ao pudor, posto que a conduta de constranger alguém, seja ele homem, seja mulher, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal, continua sendo proibida pela lei penal, agora com previsão típica no art. 213.
Analisando-se as elementares do crime de atentado violento ao pudor, temos que tal infração, primeiramente, passou a ser tratada pelo novo art. 213 como uma das modalidades do estupro, que agora abrange o estupro propriamente dito, em que se exige a conjunção carnal, e o antigo atentado violento ao pudor, em que a violência é empregada para a consecução de outros atos libidinosos distintos da conjunção carnal. Neste ponto, a legislação brasileira retornou à abordagem clássica do antigo Código Criminal do Império (1830), em que o estupro abrangia diversos crimes sexuais (atentado violento ao pudor, defloramento e sedução). Por outro lado, no que se refere às elementares, a única mudança que observamos foi a substituição da expressão ato libidinoso diverso da conjunção por outro ato libidinoso, o que gramaticamente falando não foi uma opção, mas sim uma necessidade, já que por se situarem no mesmo dispositivo seria desnecessária e reprovável a repetição da expressão conjunção carnal.
Ora, analisando-se a legislação anterior e a atual, entendemos que não houve a criação de um novo crime de estupro, nem mudança significativa a ponto de transformar, nem tampouco eliminar o atentado violento ao pudor da legislação penal brasileira. O que ocorreu, portanto, foi a mudança do nomem juris de atentado violento ao pudor para estupro, que agora abrange os crimes sexuais violentos, condensando-se num só tipo penal as duas condutas penalmente típicas previstas nos antigos arts. 213 e 214.
Assim, substancialmente falando, não estamos diante de um novo delito, uma vez que o art. 213 traz como elementos constitutivos do tipo aqueles mesmos descritos na legislação revogada. Se levarmos em consideração o elemento subjetivo do tipo, bem como os elementos normativos e objetivos, não ocorreu mudança alguma no conteúdo do tipo penal em análise, assim não podemos dizer que estamos diante de um novo crime, daí ser equívoca qualquer interpretação noutro sentido.
Os tipos penais se constituem de elementos objetivos, subjetivos, descritivos e normativos. “O estudo do tipo legal como tipo objetivo e tipo subjetivo, integrado por componentes descritivos e normativos parece uma necessidade metodológica para compreensão de conceitos fundados em relações de congruência subjetiva e objetiva (JUAREZ CIRINO DOS SANTOS, 2002)”.
Portanto, ao analisarmos os elementos contidos no atual art. 213 e os verificados nos arts. 213 e 214 da legislação anterior, percebemos facilmente que estes tipos possuem uma identidade entre si. Ao falarmos em identidade, estamos querendo dizer que os elementos típicos são idênticos, ultrapassando, deste modo, o limite superficial de uma mera interpretação literal dos tipos. Por certo que possuem distinções quanto às expressões utilizadas, conforme, inclusive, já nos debruçamos acima. Porém, materialmente falando, os tipos proíbem as mesmas condutas, com os mesmos elementos subjetivos, objetivos, normativos e descritivos, daí concluirmos tratarem de crimes idênticos.
Cumpre-nos salientar, neste ponto, a importância do estudo atento da questão, pois a incidência dos incisos I ou II, ambos do art. 9º do Código Penal Militar, trará importantes conseqüências ao agente, já que o inciso I não exige nenhum requisito complementar à incidência do direito penal militar ao delito em questão, enquanto que o inciso II exige requisitos complementares, sem os quais não poderá enquadrar a infração penal como delito de natureza militar.
Dessa maneira, existindo identidade entre as infrações previstas, respectivamente, no CPM e no Código Penal, somente haverá o seu enquadramento como crime militar se outras circunstâncias forem observadas, como, por exemplo, se for a infração penal praticada por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado, ou, ainda, quando o crime for cometido por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil.
Conforme expusemos acima, defendemos que a atualização legislativa não criou um novo crime de estupro e atentado violento ao pudor, não existindo, portanto, modificação alguma no tratamento penal disciplinado pelo Código Penal Militar.
Desse modo, o art. 9º, II, do CPM continuará sendo aplicado aos crimes previstos nos arts. 232 e
233, isto é, a prática de um ato sexual violento por um policial militar, ainda que em serviço, a princípio não qualifica a infração como crime militar, sendo preciso observar se os demais requisitos contidos no inciso II restaram verificados em concreto.
2 A MODIFICAÇÃO LEGISLATIVA TRAZIDA PELA LEI Nº. 12.015/09 E OS CRIMES MILITARES DE ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR
A análise do novel art. 213 do Código Penal passa, primeiramente, pela necessidade de concluir se o referido dispositivo criou um novo crime ou apenas condensou numa só figura típica as duas condutas criminosas já previstas nos antigos artigos 213 e 214, do Código Penal Brasileiro.
Não podemos avaliar esta modificação legislativa sem antes adentrarmos no estudo da natureza e finalidade dos tipos penais incriminadores. Neste sentido, compreendemos o tipo penal como elemento constitutivo de proibições penais, mediante a fixação de uma conduta penalmente reprovável e sua conseqüência pela violação da norma que se abstrai de tal conduta. Assim, “o tipo penal é um modelo abstrato de comportamento proibido (...) descrição esquemática de uma classe de condutas que possuam características danosas ou ético-socialmente reprovadas (FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, 2002)”.
O art. 213 continha as seguintes elementares: constranger – mulher – conjunção carnal – violência – grave ameaça. Já o art. 214 estabelecia como seus elementos constitutivos: constranger – alguém – praticar ou permitir que com ele se pratique – ato libidinoso diverso da conjunção carnal – violência – grave ameaça.
O verbo núcleo do tipo de ambos os dispositivos era o de constranger, ou seja, o ato de forçar, compelir, obrigar a vítima a praticar ou permitir que com ela fosse praticado algum ato libidinoso, sendo a conjunção carnal o elemento de distinção entre o estupro e o atentado violento
Ainda nesta linha de intelecção, o próprio art. 233 do Código Penal Militar, diversamente do que dispunha o antigo art. 214 do CP, tipificava a conduta de presenciar ato libidinoso diverso da conjunção carnal como crime de atentado violento ao pudor, sendo que na legislação penal comum tal conduta se enquadra como crime de constrangimento ilegal, em razão da ausência do verbo presenciar no revogado art. 214, e, nem por isso, deixou-se de aplicar o art. 9º, II, do CPM ao delito do art. 233, o que somente reforça o entendimento pela identidade substancial entre os crimes sexuais comuns e os da legislação penal militar.
2 CONCLUSÃO
A análise que traçamos acima demonstra inequivocamente que o Código Penal Militar não define de maneira diversa da legislação penal comum os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, já que as elementares do tipo são idênticas entre si, em que pese a ocorrência de divergências gramaticais, as quais, frise-se, não possuem conseqüência prática alguma. Além do mais, a previsão separada das condutas proibidas em dois tipos penais, em vez de num só tipo, conforme dispõe o novo art. 213, não transforma os crimes capitulados nos arts. 232 e 233, do Código Penal Militar em infrações penais distintas daquela prevista no art. 213, do Código Penal.
A identidade substancial, ou seja, a análise da equivalência dos elementos típicos e seus significados é a solução interpretativa mais adequada para o estudo do novo crime de estupro e suas conseqüências no direito penal militar. Entendemos, pois, que na busca desta identidade substancial, a Lei nº 12.015/09, ao tratar do crime de estupro, não criou um novo delito, nem tampouco modificou os antigos delitos de estupro e atentado violento ao pudor, atingindo tão somente algumas de suas circunstâncias acessórias, que apenas servem para agregar valor ao tipo básico ou fundamental.
Concluímos, portanto, que a inexistência de alteração substancial no crime de estupro, agora abrangendo as elementares do antigo delito de atentado violento ao pudor, mantendo-se, pois, sua identidade com os delitos de mesma natureza previstos na legislação castrense, implica na continuidade de incidência do Inc. II, do art. 9º, do Código Penal Militar aos crimes militares de estupro e atentado violento ao pudor, sem modificação na interpretação já cristalizada no direito penal militar.
extráido do trabalho de André Mauro Lacerda Azevedo
Promotor de Justiça
Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Potiguar - UNP
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